segunda-feira, 15 de março de 2010

Vago

prometemos nunca virar adultos
prometemos, nuncavirar pessoas chatas
que não sabem brincar

você lembra do pacto
você lembra da promessa
de nunca virarmos adultos?
defuntos andantes
chatos de terno e gravata
criando filhos que
faziam pactos
de nunca virarem adultos
como os pais

prometemos nunca desrespeitar as regras do jogo
que nós mesmos inventaríamos
você lembra do jogo?
você lembra de quando não havia o que lembrar?
a vida sempre presente
pulsando num brinquedo qualquer
você lembra do giro da montanha-russa
da montanha de bagunça
da montanha de perguntas
da montanha dela
da montanha, você lembra?

prometemos um pacto com sangue e guaraná
tudo misturado
prometemos nunca virarmos um sonho inacabado

e aquela vontade de voltar

Quântica

você caminha na calçada:
a cidade improvisa um jazz
com seu corpo

goza a catarse dos teus cadarsos livres
você pula um cocô de cachorro
com a plasticidade de um Nijinski

e quase não toca os pés no chão
nem de força, nem de suavidade:
é pura juventude

o tempo brinca de esconde-esconde
nos intervalos de seus saltos
no terreno entre teus seios
o desequilíbrio do mundo se ajusta
e eu perco o juízo das coisas

as ruas fazem um solo de silêncio e luz
a noite escorrega na tua camisa
o movimento, não conseguimos medir

sem alterar

quinta-feira, 11 de março de 2010

Pequenos tesouros

Há vinte anos eu não caminhava por aqui. O chão mudou, a parede. E mesmo mudados, consigo ver e pisar e tocar no que foram. É como se tudo estivesse miniaturizado. Na verdade, eu é que cresci. Os olhos das crianças já me dizem mais coisas sobre o mundo do que diziam quando, com eles, eu olhava o mundo. Não tem mais inocente.

Olha, era aqui nesse pedaço de chão que a gente costumava sentar. Eu gostava de dormir no chão. Dormir em qualquer lugar. A camisa da escola era branca, mas ficava cinza, encardida, suja de chão. O que estou fazendo aqui? Nada do que eu pensar vai trazer de volta aquele tempo e principalmente aquele espaço. Olha, era ali a parede onde a gente jogava bola. Ainda tem algumas marcas de bola. Eu as toco.

Eu sempre pensei que acharia tesouros escondidos. Eu deveria ter escondidos alguns. Talvez agora os achasse.

Aqui era o refeitório. Como estão pequenas as mesas e as cadeiras. Foi aqui que o Pedro declarou o seu amor pra Manu. Aqui eu imitava o Jim Carey. A mulher que servia a gente tinha um problema de fala. Ela não falava "frango", falava "fagango". Coitada. A gente zoava ela. Pedia pra ela repetir qual era a comida do dia, só pra ouvir ela falar "fagango".
E de repente, reconheço um menino. Ele vem caminhando na minha direção. Sou eu mesmo. Ele pede que eu o siga. Sigo. Entro num lugar meio escondido, no almoxarifado antigo, muita poeira, pedaços de madeira. Por entre os escombros, uma pequena porta. O menino, eu, entra e fecha a porta. Das frestas da porta vejo uma luz. Coloco a mão na maçaneta. Abro-a.

Acordo num quarto. O quarto é vazio, tem apenas um colchão, uma escrivaninha velha, de madeira, o quarto é escuro, as paredes são de madeira escura. Da porta do quarto, escuto uma música. Parece uma flauta, daquelas árabes. Um som estranho. A porta é de vidro fosco, e consigo ver a silhueta de um corredor. Das frestas da porta entra uma névoa, uma fumaça. Um cheiro estranho. Talvez um incenso. Oriental.

Abro a porta e lá está o corredor. A música aumenta. Eu nunca ouvi essa música na minha vida. Eu sempre ouvi essa música na minha vida. Sinto-me envolvido por forças desconhecidas. Não há necessariamente gravidade, nem as leis da física nesse local. Sinto como se estivesse num espaço artificial, criado pelas circunstâncias da minha mente, seguindo apenas as maleáveis convenções dos sonhos.

Acordo em meu quarto. Estou paralisado. Meu corpo está completamente paralisado. Tento gritar, a voz também não sai. Há vinte anos eu não caminhava.

Dormindo em qualquer pedaço de chão, estava ele. O menino sorriu e me mostrou um senhor, deitado no chão. Ao perceber em seus olhos a vida que sonhava, pedi para o senhor que me seguisse.

Fui até a porta. Abri.Eu sempre procurei tesouros escondidos, nos olhos das pessoas.

Ontem descobrirei

ontem descobrirei a minha mão voando aqui no longe.
amanhã o seu antigo sorriso me contou um segredo.
é preciso ter medo para conquistar a poesia.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Renasce

o cimento é um material que distorce o calor
e as distâncias entre nossos corpos se curvam
numa cintura
numa moldura
não sei se a primavera vale mais que esse sol
permanente dos teus olhos
frios

nem as cigarras saberiam cantar uma tarde
como eu canto essa vontade
de ficar à vontade
enquanto destroem o mundo
e comem e bebem

sinto você distante como se me desse um abraço
sinto você perto como se mandasse uma carta
sou todo cinco sentidos
sete sentidos
ainda procurando algo que perdi criança

os jornais não me interessam
nem assassinatos
nem gols

só quero saber do que posso ver com as mãos
tocar com os olhos
e sonhar com os pés

às vezes é como se eu não me fosse